Quais limites separam a imposição de tabelas de preços de um cartel? A delimitação dessas linhas turvas define a regra de julgamento que seria adotada em cada caso: enquanto cartéis não deixam espaço para a impugnação dos seus efeitos anticompetitivos, outras condutas coordenadas podem ter um saldo de bem-estar no mínimo ambíguo. Diante de um monopsônio, por exemplo, a imposição de negociações coletivas pode ser o remédio com melhores efeitos em termos de bem-estar. Mas, nos casos limítrofes entre essas duas condutas, a escolha da metodologia mais adequada para o julgamento não é trivial.
Todas essas questões foram discutidas na última Sessão Ordinária de Julgamento do Cade, em 11 de setembro de 2024. Naquela ocasião, o Cade julgou mais um caso de tabela de preços, divulgadas e impostas pelo Conselho Regional dos Corretores de Imóveis de Goiás – Creci/GO.[1] Ao avaliar o caso, o Conselheiro Diogo Thomson resolveu apresentar uma tipologia dos casos de tabelamento de preços – criando, assim, em suas palavras, um algoritmo hermenêutico para julgá-los.
O ponto de partida de sua análise retoma a distinção entre os standards probatórios da jurisprudência americana – per se e regra da razão – dos tipos de ilícito do direito europeu – por objeto ou por efeitos. Esses binômios costumam ser utilizados de forma intercambiável, mas, como ponderou o Conselheiro Diogo Thomson, as suas metodologias não são idênticas. Embora a regra per se possa se aproximar de ilícitos por objeto, a jurisprudência europeia reconhece casos em que é possível afastar a presunção de ilicitude atrelada à conduta; nos. A principal distinção, portanto, recai no espaço para defesa e demonstração de que a presunção de ilicitude pode ser relativizada.
Na interpretação do Conselheiro Diogo Thomson, a legislação brasileira adotaria a divisão europeia entre os ilícitos por objeto e os ilícitos por efeitos. Assim, algumas condutas teriam presunção relativa de ilicitude, enquanto a ilicitude de outras dependeria da demonstração de efeitos anticompetitivos. Apesar disso, especialmente na investigação de cartéis, a evolução da jurisprudência construiu uma presunção máxima de ilicitude, sem espaço para um exame mais aprofundado do contexto econômico e jurídico da conduta. Na prática, então, há um entendimento jurisprudencial de que cartéis devem ser julgados segundo a regra per se.
A escolha da metodologia mais adequada para julgar tabelas de preço é uma opção entre esses diferentes graus de presunção de ilicitude. O teste proposto pelo Conselheiro Diogo Thomson seria um guia para identificação da presunção a ser escolhida.
Após analisar a jurisprudência do Cade, o Conselheiro Diogo Thomson identificou, inicialmente, uma série de condenações em casos de tabelas de preços adotadas para consumidores finais. Nestas hipóteses, a adoção de tabelas de preços era identificada “como um ilícito por objeto”, com “adesão a uma presunção absoluta de ilicitude semelhante à regra per se norte-americana, diante de seu uso para estabelecimento e controle de preços”.
Em outros casos, no entanto, o uso de tabelas foi considerado lícito. A maior parte deles envolvia o mercado de saúde suplementar; a assimetria de poder de barganha entre médicos e planos de saúde poderia justificar tabelas como uma medida de poder compensatório. A regulação é outro fator que pode afastar a ilegalidade de tabelas de preços – casos, por exemplo, de tabelas de preços máximos de medicamentos. Extrapolar essas imunidades, todavia, pode constituir uma infração à ordem econômica.
Considerando esses precedentes, o Conselheiro Diogo Thomson sugeriu que tabelas de preços sejam avaliadas como ilícitos por objeto, com dois níveis de presunção de ilicitude:
- Presunção absoluta de ilicitude para tabelas adotadas para o consumidor final, que têm nítida similitude com cartéis hardcore; e
- Presunção relativa de ilicitude para os demais casos, que admitem defesas que vão além da ausência de autoria e materialidade, como (i) obrigatoriedade da adoção da tabela; (ii) preços mínimos ou máximos; (iii) nível de influência no comportamento dos filiados; (iv) utilização como forma de compensação; e (v) vínculo a alguma imunidade decorrente de regulação pública.
Nesse contexto, o Conselheiro Diogo Thomson propôs, então, um algoritmo hermenêutico para julgar tabelas de preço, contendo as seguintes etapas:
1. Determinação enquanto ilícito por objeto: as tabelas têm presunção de ilicitude.
2. Análise de possíveis imunidades e distorções de sua utilização: há legislação específica determinando as tabelas? A utilização respeita as finalidades estabelecidas pela norma? Se ambas as respostas forem positivas, a análise para neste ponto. Caso contrário, as próximas etapas são observadas.
3. Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção absoluta: se o alvo for o consumidor final, há presunção absoluta de ilicitude – o acusado só se defenderá negando a sua autoria ou a materialidade da prática.
4. Caracterização do alvo do tabelamento e adoção de presunção relativa: em outros cenários, a presunção é relativa e há espaço para análise das condições econômicas e jurídicas nas quais a tabela é adotada.
5. Análise efetiva das condições econômicas e jurídicas: avaliação da relação entre o poder de mercado/posição dominante dos agentes envolvidos.
6. Avaliação dos elementos adjacentes/específicas ao conjunto probatório: avaliação de mecanismos de coerção, ameaça e boicote; análise das relações entre os elos de mercado ou entre diferentes entidades/agentes/profissionais.
Quais seriam, então, os limites que separam cartéis de tabelas de preço? Em linha com o algoritmo hermenêutico proposto pelo Conselheiro Diogo Thomson, a distinção mais relevante seria o alvo do tabelamento. Uma tabela diretamente relacionada a consumidores finais é equiparada a um cartel, enquanto outras tabelas oferecem mais saídas para que um acusado possa se defender.
1 Processo Administrativo nº 08700.000284/2022-72.