O Novo Projeto de Lei sobre Mercados Digitais no Brasil: Agentes de Relevância Sistêmica e Possíveis Obrigações

Depois de quase um ano de discussões, o governo federal enviou hoje ao Congresso Nacional um projeto de lei que altera a Lei nº 12.529/2011 e cria um novo regime regulatório para agentes econômicos considerados de relevância sistêmica em mercados digitais. A proposta insere o país em uma tendência global de criação de instrumentos jurídicos voltados a limitar o poder de gatekeeping de grandes grupos tecnológicos. Embora tenha características próprias, a proposta brasileira é explicitamente inspirada em projetos como o Digital Markets Act (DMA) da União Europeia e as reformas concorrenciais do Reino Unido e da Alemanha.[1]

A proposta legislativa estabelece um sistema em três níveis: em um primeiro momento, o Cade poderá designar empresas de “relevância sistêmica” com base em critérios qualitativos e quantitativos, o que automaticamente desencadeia um conjunto de obrigações administrativas gerais. Em um segundo momento, abre-se a possibilidade de impor “obrigações especiais” específicas e calibradas sobre determinados produtos ou serviços da empresa designada. Essas obrigações somente poderão ser determinadas mediante processo administrativo próprio, conduzido pela nova Superintendência de Mercados Digitais e decidido pelo Tribunal do Cade. Caso haja suspeita de descumprimento, a Superintendência de Mercados Digitais, em um terceiro nível, poderá abrir um processo administrativo específico para imposição de sanções – de maneira análoga às infrações à ordem econômica.

Diferentemente, no entanto, do modelo do DMA, que se concentra na designação de serviços específicos classificados como core platform services (CPS), a proposta brasileira adota um enfoque institucional mais amplo: a designação recai sobre grupos econômicos inteiros que preencham critérios qualitativos e quantitativos de relevância sistêmica. Essa escolha amplia o alcance da regulação e reconhece que o poder de mercado em ecossistemas digitais decorre da combinação de múltiplas atividades e integrações.

Seguem abaixo os principais pontos relevantes do projeto:

  • Nova unidade institucional – Superintendência de Mercados Digitais: o projeto cria, no âmbito do Cade, uma nova Superintendência especializada em mercados digitais, responsável por instaurar e instruir processos de designação e de imposição de obrigações especiais a agentes de relevância sistêmica. O Superintendente terá mandato de 2 anos, podendo ser reconduzido uma vez, e será nomeado pelo Presidente da República após aprovação do Senado. A estrutura se inspira na atual Superintendência-Geral, mas com foco específico no acompanhamento permanente de plataformas digitais, podendo requisitar informações e fiscalizar o cumprimento das obrigações impostas. Essa especialização busca reforçar a capacidade técnica do Cade frente aos desafios concorrenciais trazidos pela economia digital.
  • Princípios orientadores: a atuação do Cade em mercados digitais será guiada por três objetivos centrais: (i) reduzir barreiras à entrada; (ii) proteger o processo competitivo; e (iii) promover a liberdade de escolha. É possível que haja aqui uma omissão proposital ao princípio utilizado há anos no direito concorrencial de “consumer welfare standard” (“padrão de bem-estar do consumidor”). Por outro lado, também não são utilizados os conceitos de “equidade” ou “justiça”, que aparecem no DMA europeu.
  • Critérios para designação de empresas de relevância sistêmica: o projeto estabelece que a designação só pode ocorrer quando a empresa atender simultaneamente a critérios qualitativos e quantitativos.
    • Critérios qualitativos: basta a presença de um dos seguintes elementos para que o agente seja considerado relevante: (i) atuação em um ou mais mercados de múltiplos lados; (ii) poder de mercado associado a efeitos de rede; (iii) integração vertical e presença em mercados adjacentes; (iv) posição estratégica para o desenvolvimento de atividades de terceiros; (v) acesso a grande volume de dados pessoais e comerciais relevantes; (vi) base significativa de usuários profissionais e finais; ou (vii) oferta de múltiplos produtos ou serviços digitais
    • Critérios quantitativos: a empresa deve registrar, no exercício anterior, faturamento bruto global superior a R$ 50 bilhões ou faturamento bruto no Brasil superior a R$ 5 bilhões.

Esse arranjo busca capturar grandes plataformas digitais com características estruturais que lhes conferem posição de gatekeepers, mas ao mesmo tempo delimita o alcance da regulação para evitar que empresas de menor porte sejam incluídas.

Ao mesmo tempo, a amplitude dos critérios qualitativos pode gerar alguma incerteza sobre as empresas que estariam sujeitas à designação. Agentes tradicionais, mas digitalizados, como os bancos e as bandeiras de cartão de crédito, participam de mercados com efeitos de rede, integrações verticais, múltiplos lados e um vasto acesso a dados. Mas, como essas empresas não são nativas dos ecossistemas digitais, não é claro se elas estariam incluídas na proposta. A experiência internacional diria que não: até o momento, as designações feitas por União Europeia e Alemanha[2] atingiram apenas empresas intrinsecamente digitais.[3]

A designação, uma vez feita, terá validade de até 10 anos, podendo ser renovada por novo processo administrativo

  • Processo de designação: pode ser iniciado de ofício ou a partir de denúncia. A Superintendência de Mercados Digitais deve emitir recomendação em até 180 dias; em seguida, o processo é julgado pelo Tribunal do CADE, que tem até 120 dias para pautar. A designação tem validade de 10 anos, prorrogável, e abrange todo o grupo econômico. O projeto prevê ainda um rito abreviado: se não houver necessidade de instrução complementar, a Superintendência deve encaminhar o processo ao Tribunal em até 30 dias após a defesa da empresa. Essa dinâmica permite equilíbrio entre análise aprofundada e celeridade. Além disso, o texto prevê a aplicação da Lei nº 8.437/1992, limitando concessão de liminares contra decisões do Cade e reforçando a estabilidade das medidas.
  • Obrigações gerais: as empresas designadas devem manter escritório no Brasil, atualizar regularmente dados de contato e registrar representantes legais junto ao Cade. Essas obrigações administrativas se aplicam automaticamente, sem necessidade de decisão adicional.
  • Obrigações especiais: podem ser impostas por meio de processo administrativo próprio, decidido pelo Tribunal do Cade, após recomendação da nova Superintendência de Mercados Digitais. Essas obrigações serão impostas a serviços / produtos específicos das empresas designadas, o que será analisado e decidido em processo administrativo separado. Essas obrigações podem incluir:
    • Notificação obrigatória de todas as operações de fusão e aquisição, independentemente dos thresholds usuais;
    • Transparência quanto a termos de uso, critérios de ranqueamento e estruturas de preços;
    • Proibição de práticas de exclusão, self-preferencing, tying, restrição de acesso a insumos/usuários ou estratégias predatórias;
    • Obrigações positivas como portabilidade gratuita de dados, interoperabilidade, liberdade para instalar aplicativos de terceiros, acesso a dados e métricas de desempenho, modificação de configurações padrão, mecanismos eficazes de reclamação e condições isonômicas de oferta de serviços.
    • Análise de eficiências na imposição de obrigações especiais: muito embora o projeto não fale especificamente na análise de eficiências, ele prevê que, ao impor obrigações especiais a agentes de relevância sistêmica, o Cade poderá considerar certos fatores relacionados ao funcionamento dos serviços. O artigo 47-C, §2º lista três elementos que podem ser levados em conta: (i) aspectos dos produtos e serviços que visem à segurança da informação; (ii) o cumprimento de obrigações legais e regulatórias aplicáveis à empresa designada; e (iii) aspectos que melhorem a funcionalidade principal dos ecossistemas digitais do agente. Além disso, o artigo 87-B exige que a imposição de obrigações especiais seja sempre precedida por uma análise do impacto econômico da decisão.
  •  Aplicação de obrigações especiais: as obrigações entram em vigor 60 dias após a decisão do Tribunal e podem ser revistas em caso de mudanças relevantes no mercado. A Superintendência pode conduzir em paralelo processos de designação e de imposição de obrigações, acelerando a aplicação das medidas, mas esse arranjo levanta preocupações sobre devido processo, já que empresas podem enfrentar múltiplos processos sobrepostos
  • as obrigações entram em vigor 60 dias após a decisão do Tribunal e podem ser revistas em caso de mudanças relevantes no mercado. A Superintendência pode conduzir em paralelo processos de designação e de imposição de obrigações, acelerando a aplicação das medidas, mas esse arranjo levanta preocupações sobre devido processo, já que empresas podem enfrentar múltiplos processos sobrepostos
  • Processos de descumprimento e sanções: o descumprimento das obrigações especiais enseja aplicação das mesmas penalidades previstas na Lei de Defesa da Concorrência para infrações antitruste: multas entre 0,1% e 20% do faturamento bruto. Além disso, podem ser aplicadas multas diárias em caso de continuidade da infração. O enquadramento demonstra que o legislador busca dar o mesmo peso às violações regulatórias de mercados digitais e às práticas concorrenciais clássicas.
  • Relatórios de conformidade: as empresas designadas deverão apresentar periodicamente relatórios detalhando o cumprimento das obrigações impostas. O Cade poderá ainda determinar a contratação de auditoria independente, custeada pela própria empresa, para atestar a conformidade. Essa exigência aproxima o regime de mercados digitais de modelos de compliance regulatório já presentes em outros setores, como o financeiro. A Superintendência de Mercados Digitais divulgará os relatórios enquanto perdurarem as obrigações, mantendo o sigilo legal, quando aplicável.
  • Competências e repartições de atribuições: A Superintendência-Geral do Cade continuará responsável por analisar atos de concentração e casos de cartel e condutas coordenadas, mesmo quando envolverem empresas designadas. Já a nova Superintendência de Mercados Digitais será competente para tratar de casos unilaterais de agentes sistêmicos. Processos em andamento relacionados a plataformas designadas seriam transferidos à nova unidade, reforçando a especialização e evitando sobreposição de funções.
  • Participação da SEAE e de outros órgãos: o projeto prevê a participação ativa da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) e de outros órgãos da administração pública que detenham competência sobre mercados digitais ou para a defesa de direitos difusos e coletivos, nos novos procedimentos que seriam instituídos. Nesse sentido, esses órgãos teriam competência para: (i) reportar ao Cade o descumprimento de obrigações especiais; (ii) promover avaliação de impacto dessas obrigações, com recomendações de eventuais ajustes; (iii) apresentar representações que ensejariam a instauração imediata de processos administrativos para designação de agente econômico de relevância sistêmica em mercados digitais ou de determinação de obrigações especiais; e (iv) ser admitidos nos processos iniciados após a sua representação, devendo ser intimados para a prática de atos processuais.
  • Audiências públicas: de acordo com o projeto, o plenário do Tribunal do Cade passaria a ter competência para convocar audiências públicas, para ouvir depoimento de cidadãos, especialistas, empresas e organizações da sociedade civil. Essas audiências também deveriam acontecer (i) antes da elaboração dos regulamentos do Cade sobre os procedimentos previstos no projeto; e (ii) após a elaboração de manifestação preliminar da Superintendência de Mercados Digitais nos processos de designação de agentes de relevância sistêmica.
  • Revisão Judicial: o projeto prevê a aplicação da Lei n.º 8.437/1992, que dispõe sobre a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público, às decisões do Tribunal do Cade nos procedimentos que seriam criados. Nesse caso, o questionamento judicial dessas decisões ganharia algumas limitações: (i) medidas liminares não seriam deferidas se elas esgotassem, no todo ou em parte, o objeto da ação; (ii) o Cade teria que ser ouvido antes da concessão de qualquer tutela de urgência; e (iii) os presidentes dos Tribunais competentes para julgar eventuais recursos poderiam suspender os efeitos de liminares concedidas contra o Cade. Essas previsões não são usuais em procedimentos judiciais comuns.Ainda é cedo; ao longo da tramitação do projeto no Congresso, o texto poderá ser revisado e alterado em vários aspectos. De qualquer forma, todas as regras propostas pelo projeto alterariam o paradigma da defesa da concorrência em plataformas digitais. As empresas que forem designadas com relevância sistêmica para mercados digitais poderiam ser alvo de processos para imposição de obrigações personalizadas de acordo com os seus próprios serviços.

    Nos processos de designação e de imposição de obrigações específicas, o Cade – e a sua possível nova Superintendência de Mercados Digitais – precisam ter cautela. O objetivo deve ser, efetivamente, (i) reduzir barreiras à entrada; (ii) proteger o processo competitivo; e (iii) promover a liberdade de escolha. Obrigações excessivas ou que não se adequem aos respectivos modelos de negócio de plataformas podem gerar efeitos colaterais inesperados. Calibrar o limite entre a promoção da concorrência e a redução dos incentivos à inovação será o desafio do regime regulatório proposto no projeto.

[1] Digital Markets, Competition and Consumers Act (DMCC) no Reino Unido e 11ª emenda à Lei contra Restrições à Concorrência da Alemanha.

[2] Os processos de designação, no Reino Unido, ainda estão em andamento.

[3] Alphabet, Amazon, Apple, Booking, ByteDance, Meta e Microsoft foram designadas gatekeepers na União Europeia. Na Alemanha, Meta, Alphabet/Google, Amazon, Apple e Microsoft já foram designadas como empresas de importância significativa para mercados digitais.