Estabelece o caput do art. 36 da Lei 12.529/2011, aqui referida como Lei de Defesa da Concorrência (LDC): “Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados”. E segue a lista das possíveis infrações, aqui mencionada apenas para dar completude ao texto, até porque a afronta à Constituição ocorre no caput: “limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”, “dominar mercado relevante de bens ou serviços”, “aumentar arbitrariamente os lucros” e “exercer de forma abusiva posição dominante”.
Tem-se aqui manifestação clara do direito administrativo sancionador, que não pode prescindir dos elementos de dolo ou culpa para eventual condenação, já que constitui punição por ato ilícito. Esclarece Fábio Medina Osório que “consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialidade pro futuro, imposto pela Administração Pública (…) como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar (…)”[1].
Lembremos aqui que Alexandre Cordeiro (aliás baseado expressamente em Fábio Medina Osório), diz claramente que “o que realmente faz sentido, e não vejo nenhum problema nisso, é a importação para o direito administrativo sancionador de alguns institutos do direito penal” [2]. Em trecho anterior do mesmo artigo, o autor diz que “o que se procura saber na culpabilidade é se a sociedade, naquelas condições em que o agente se encontrava, o autoriza a agir em desconformidade ao direito”[3]. Temos aqui um vislumbre do que pode ser a exigência de ato volitivo, ainda que carente de interpretação, para a configuração de infração da ordem econômica.
O que não se pode admitir é uma infração assemelhada à penal – por ser parte do Direito Sancionador – que um agente cometa “sem querer”, por mero acidente, sem dela ter a vontade de participar e, pior ainda, sem a consciência de participar de um ilícito. Imagine-se, ainda que de forma exagerada (mestres de antigamente gostavam das demonstrações por absurdo), que garçons e outros funcionários de um restaurante sejam processados porque nas mesas do local houve um conluio e os funcionários serviram os infratores.
Neste ponto devemos retornar à origem de tudo, ou seja, à Constituição Federal, cujo § 4º dom art. 173 dispõe: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Que se ressalte aqui a expressão “que vise a”, adiante revisitada. Desde logo é possível constatar que o caput do art. 36 da LDC extrapolou o texto constitucional que lhe dá sustentação e que lhe deve servir de orientação, havendo aqui duas expressões que merecem exame especial para se concluir pela inconstitucionalidade parcial do artigo: “ou que possam produzir” e “independentemente de culpa”.
Com efeito, o texto constitucional só se refere ao abuso “que vise a”, ou seja, que tenha por objetivo, que seja intencional. Já o caput do artigo 36 da LDC fala em atos “que tenham por objeto” (neste caso de acordo com o texto constitucional) ou que “possam produzir” determinados efeitos. Os atos que “possam produzir”, sem que haja o elemento da vontade do agente, são desautorizados pelo texto constitucional, estão fora do limite neste contido. Mais ainda, se o ato pode produzir determinado efeito, ainda que sem a vontade do agente, aqui possível responsável objetivo, também resta óbvio ser inconstitucional a expressão “independentemente de culpa”, além, obviamente, da expressão “possam produzir”. Retornemos à expressão “que vise a” do texto constitucional, lembre-se, com Celso Ribeiro Bastos, que “não se pode esvaziar por completo o conteúdo de um artigo, qualquer que seja, pois isso representaria uma forma de violação da Constituição (…) todos preceitos constitucionais têm valia, não se podendo nulificar nenhum”[4]
Aos que entendem que a interpretação acima pode ser simplória, diz Celso Ribeiro Bastos que, “a não ser excepcionalmente, e de forma devidamente fundamentada, não se deve atribuir aos termos interpretados significado distinto daquele que estes termos têm na linguagem comum”[5]. Temos aqui uma orientação segura de que a expressão “que vise a” do § 4º do art. 173 da Constituição deve ser entendida pelos atores do direito da mesma forma que uma pessoa medianamente instruída o faria: denotando intenção. Isso significa que (i) a produção de efeitos só vale se houver intenção e, mesmo sendo em parte repetitivo, (ii) não há infração da ordem econômica independente de culpa.
Vale também observar que um texto legal pode ter inconstitucionalidade apenas parcial, sendo este o caso aqui tratado. Zeno Veloso é claro ao mostrar que, “residindo a inconstitucionalidade numa parte, num segmento, num período da norma, em uma expressão, numa frase, ou até numa palavra, a inconstitucionalidade parcial é declarada, salvando-se o remanescente”[6]. De fato, o que se vê no caso concreto é a inconstitucionalidade de duas expressões do art. 36 da LDC: “independentemente de culpa” e “ou possam produzir”.
A Constituição de 1946 foi também clara – como a atual – neste tema ao prescrever, no art. 148: “A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”.
Benjamin Shieber assim discorre sobre esse artigo constitucional, como certamente discorreria sobre o texto atual: “A legislação expressamente baseada nessa outorga constitucional não deve ir além do mandato, afastando a finalidade da conduta como elemento de sua ilicitude. Isto posto, impõe-se a conclusão de que a lei deve ser interpretada pelo CADE como se a expressão `de propósito´ modificasse as palavras `dominar´ e `eliminar´ (…)”[7].
Por estas razões, são claramente inconstitucionais as expressões “independentemente de culpa” e “ou possam produzir” do art. 36 da LDC. Também claramente, a infração da ordem econômica exige o elemento volitivo, a intenção de cometer a ilicitude.
[1] “Direito Administrativo Sancionador”, RT, São Paulo, 2019, pág. 105
[2] “Teoria Normativa da Culpabilidade no direito antitruste”, Jota, 09/08/2017, pág.13
[3] Obra citada, pág. 11
[4] “Hermenêutica e Interpretação Constitucional”, IBDC/Celso Bastos, São Paulo, 1997, pág. 105
[5] Obra citada, pág. 112
[6] “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade”, Del Rey, BH, 2003, págs. 163/164
[7] “Abusos do Poder Econômico”, RT, São Paulo, 1966, pág. 35