O que a pipoca tem a ver com o direito concorrencial (e o direito das relações de consumo)? Recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tratou do arraigado costume de, entre outras coisas, comer pipoca no cinema, ajuda na resposta. Com efeito, no Recurso Especial 1.331.948-SP, o STJ, sendo Relator o Ministro Villasboas Cueva, decidiu que é ilegal a proibição, feita por empresas de exibição cinematográfica, de expectadores entrarem nas salas de exibição com alimentos adquiridos fora do estabelecimento. De acordo com essa combatida exigência, os expectadores, se quiserem refrigerantes, pipocas e guloseimas em geral só podem adquirir tais bens dentro do cinema. Vale lembrar que o julgado menciona precedente do mesmo Tribunal, tratando do mesmo tema (Recurso Especial 744.602-RJ, sendo Relator o Ministro Luiz Fux, julgado em 2007). Portanto, não há surpresa, a não ser pelo fato do assunto ter exigido novo julgamento. A decisão teve por base o art. 39, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor (CDC): “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços (…) condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço (…)”. Trata-se aparentemente do que se convencionou chamar de venda casada, dando-se aí a intersecção com a Lei de Defesa da Concorrência (LDC: Lei 12.529, de 2011), cujo § 3º do art. 36 diz que “as seguintes condutas, além de outras, na medida em que configuram hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica (…) subordinar a venda de um bem à aquisição de outro (…)”. O caput e os incisos I e IV do referido artigo dizem que “constituem infração da ordem econômica (…) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa (…) exercer de forma abusiva posição dominante”. Não se quer aqui fazer uma análise profunda desta matéria mas por o foco numa situação que à primeira vista parece trivial, ou seja, o arraigado costume de comer pipoca no cinema. Aqui focalizamos comparativamente os dois sistemas em que a conduta é contemplada. Além disso, a menção desta matéria é muito oportuna pois aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 398-DF, sendo Relator o Ministro Edson Fachin e na qual a Procuradoria Geral da República (PGR), por seu titular Rodrigo Janot, emitiu em 30.08.2016 substancioso parecer em cuja ementa se lê: “Não há alicerce constitucional nem infraconstitucional para vedar que clientes de salas de exibição cinematográfica nelas ingressem portanto bebidas e alimentos adquiridos em outros estabelecimentos. A vedação é abusiva, ao limitar, de forma injustificada, o poder de escolha da clientela (…)”. Como é possível perceber, uma questão aparentemente trivial continua a preocupar os Tribunais Superiores. A visão concorrencial deve partir da ideia da existência de um monopólio a partir do momento em que o expectador entra na antessala de exibição e, para adquirir os produtos que deseja consumir, tem apenas os fornecedores habilitados (ou a própria empresa de exibição) para fazê-lo. Trata-se aparentemente de uma venda casada pois, tendo comprado o ingresso, o expectador se vê forçado a adquirir produtos apenas internamente e dos fornecedores habilitados. Todavia, num segundo olhar, devemos perceber que a compra do ingresso não obriga o consumo de qualquer produto, sendo tal consumo facultativo para o expectador. Portanto, o que se tem não é venda casada mas exigência de exclusividade. Independentemente do título da possível infração, ela deve, para ser objeto de sanção, cair numa das hipóteses do caput e dos incisos I e IV do art. 36 da LDC. Mas Richard B. McKenzie nos fornece outra possível explicação para a exigência das salas de cinema, ao dizer que o cinema (da mesma forma que os estádios esportivos) vende um pacote de diversão e não apenas um assento na sala de exibição, sendo que, quanto mais caro for o pacote, menor será o número de ingressos vendidos. Conclui o autor dizendo que o cinema poderia baratear os ingressos se souber que todos ou a maior parte dos expectadores comprará produtos dentro das antessalas de exibição (“Why popcorn costs so much at the movies”, Copernius/Springer, 2008, pág. 89). Além da explicação do autor acima referido, que pode muito bem ser utilizada no contexto do CDC, temos que no âmbito da LDC é preciso compatibilizar a descrição da conduta (“subordinar a venda de um bem à aquisição de outro”) com a caracterização de uma infração (“limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa” ou “exercer de forma abusiva posição dominante”). Isso quer dizer que a venda casada ou qualquer outra conduta só é infração contra a ordem econômica se limita, falseia ou de qualquer forma prejudica a livre concorrência ou se constitui exercício abusivo de posição dominante. Assim, a matéria abordada na mencionada decisão do STJ tem a visão voltada exclusivamente para o direito das relações de consumo, em que o titular do direito é o consumidor (considerado individual ou coletivamente). Já no que toca ao direito da concorrência, estabelece o § único do art. 1º da LDC que “a coletividade é a titular dos direitos protegidos por esta lei”. O direito da concorrência deve contemplar o consumidor, mas isso ocorre apenas indiretamente. Diz Roberto Pfeiffer que “a proteção do consumidor é um objetivo indireto ou mediato da política de defesa da concorrência, já que através da aplicação das normas de defesa da concorrência não há como adjudicar direitos ao consumidor” (“Defesa da concorrência e bem-estar do consumidor”, RT, São Paulo, 2015, pág. 151). No Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não existe ainda jurisprudência, até porque o Processo Administrativo 08012.004714/2000-78, instaurado contra uma rede de cinemas, terminou em acordo, pelo qual houve o compromisso da empresa de permitir a entrada de produtos alimentícios comprados fora da antessala de exibição (com exceção de produtos embalados em vidros ou latas). Assim, à guisa de conclusão, quanto ao direito das relações de consumo a jurisprudência vinda do STJ não deixa mais margem para dúvidas. Já quanto ao direito concorrencial, será necessário, para que uma infração seja objeto de sanção, que se prova que houve uma de duas situações: (i) limitação, falseamento ou prejuízo à livre concorrência ou à livre iniciativa e/ou (ii) exercício abusivo de posição dominante.